terça-feira, março 20, 2007

Conta-me um conto

O Natal de um rouxinol mergulhado em formol



São 3 da tarde do dia 24 de Dezembro de 1992 -véspera de Natal. Entre tubos de ensaio, lentes oculares do microscópio, láminas e lamelas, formol e outros ácidos - isto não significa nada! Se não fosse o pinheiro com luzinhas amarelo esverdeadas e umas fitas pingo doce completamente esgroviadas nos ramos, até me esquecia que era Natal. Há 3 anos que não sei o que é Natal ! Quando Maria morava lá em casa era diferente. Ela chegava todos os dias às 8 da noite e eu às 5 da tarde. Nesse intervalo de tempo, preparava lhe o jantar, mimava o gato e ainda sobravam minutos para encher a banheira d´ água quente com bolinhas de sabão. Para que a Maria chegada do trabalho, triste e cansada, sentisse em casa um pequenino jardim de miosótis que a fizessem sorrir. Como eu amava aquele sorriso nela! Parecia que, naqueles olhos tristes de Outono, o sorriso rasgava lhe na face a apoteose da derrota da tristeza em abono da alegria inconsciente. É que a Maria era uma menina crescida! No seu corpanzil (1,80), escondia trajeitos de menina de bibe e trança de lacinhos. Talvez por isso a amasse tanto. Estava sempre a fazer me lembrar pedacinhos da terra da minha infância. Ora chorava miudinho por se sentir frágil na selva urbana ora enchia o ar com grandes gargalhadas de pequeninas coisas sem jeito.
Foi com essa Maria que vive vinte anos da minha vida. Durante esse tempo para mim, não existiam mais mulheres –só a minha Maria. Podiam sair todos os dias no jornal mulheres lindíssimas, encantadoras, inteligentíssimas em letras GARRAFAIS, cruzar me com a Kate Moss na baixa de Lisboa que eu só tinha olhos para a Maria. Quem mais precisaria da minha protecção como a minha Maria. Essa menina que me enchia os olhos com borboletas e o sono de mãos que deslizam nos lençóis que fazem de todas as noites a noite ideal para fazer amor. Maria era muito frágil como cristal carregado às costas de uma formiga - frágil mas infinitamente grande no seu brilho de estalactite grutal. Por mais que o tempo passe sei que, jamais desaparecerá da minha memória as nossas corridas pela praia ao amanhecer, o jeito dos nossos concursos de trepar às árvores, aquela vez em que amordaçamos o porteiro para fazer amor no elevador! Ah ! Até o jeito maluco com que arrastavas para nossa casa qualquer cão, gato, pedinte ou criança durante semanas e meses a fio! Sinto tanto a tua falta Maria- se soubesses! Maldito comboio! Maldita bicicleta! Eu disse te que não te queria sozinha nas passagens de nível mas tu eras terrivelmente teimosa. E foi essa teimosia, amor, que te levou para bem longe de mim1 Sinto mais essa dor sempre que chega o Natal porque as noites de Natal contigo não eram terrenas - eram simplesmente celestiais. Ao ver te de quimono vermelho com os teus pés pequeninos sentada, como uma gueixa na esteira por detrás do biombo à minha espera…enquanto eu me descalçava e acendia o incenso de ópio no parapeito da janela - apetece me chorar. E saber que depois de jantarmos os dois celebrávamos o Natal como mais ninguém celebrava…..
Deitavas te nua a meu lado e com tinta-da-china cobrias me o corpo com poemas de amor (quase sempre sua tontinha com Perdidamente da Florbela Espanca). Tu adoravas aqueles três versos:

“E é amar te assim Perdidamente
É seres alma e sangue e vida em mim
E dizê lo cantando a toda a gente

e depois eu, deliciava me a escrever Eugénio de Andrade na tua pele nua macia, tão macia que ainda a sinto nos lábios. Aquilo era para nós Natal! Gravarmos na nossa pele odes d’ amor. Afinal não era o Natal uma época de amor universal? Nós tínhamos o nosso Universo que, durante o ano, tu trazias até ele centenas de pessoas com quem retalhavas o coração. Mas , na noite de Natal, o nosso universo era eu e tu, um nós mas com duas partes. Depois, os nossos corpos transfigurados pela poesia, e o Amor na tinta-da-china, perdiamo nos pela noite fora, em fazer amor quentinho como pão. E eu gostava de ver o Eugénio de Andrade contorcer se no teu corpo e a Florbela no meu. Aquelas vogais, virgulas e consoantes e exclamações que ondeavam ao ritmo dos corpos, suando com o nosso arfar. Depois, de manhãzinha, quando ainda dormitavas, levantava me sorrateiramente e ia por o teu presente na tua meiinha cor-de-rosa pendurada na lareira e, sorria porque tu inocentemente manhosa, tinhas já posto o meu presente na minha botifarra cinzenta. Lembro me que, no último Natal que passamos juntos a risota que foi desembrulharmos os presentes! Non-sense total! Na minha botifarra preta tinha uma babete lilás bordada a ponto de cruz “ Papá urso - És o maior da floresta” ( só teu)e, na tua meiinha cor-de-rosa encontraste duas coisas: um frasquinho com água do mar e uma estrelinha cor de laranja grudada ao vidro e, um anel feito de casca de romã ( só meu!)
Só sei que adoramos os presentes e, durante muito tempo, ficamos abraçados a choramingar sobre a nossa felicidade. Era daqueles abraços que não apetece separar! Se ao menos tu estivesses aqui!!!!!!!
Por isso, os meus frascos, os meus livros de genética e o meu bisturi são a minha companhia este Natal. Não seria capaz de passá lo com mais ninguém! Dissessem o que dissessem seria para mim como colocar um menir sobre o nosso Natal. Substitui lo por uma palhaçada qualquer, um ritual que não me ia dizer nada. Para mim, só o nosso Natal é que era Natal…Assim, este vou passá lo a continuar a investigar o gene do envelhecimento. Sabias Maria que estou cada vez mais perto de o encontrar? Sabes, quando tu ainda eras viva, talvez não me importasse tanto de não o descobrir, mas agora não….agora quero deixar uma herança aos outros para que possam ter tempo de amar eterno, para serem eterno…Agora para mim é quase uma questão de honra, dar tudo pela ciência.
( espera Maria, venho já falar contigo mas tenho que ir abrir a janela a um pássaro que, coitado, já está há meia hora a piar do outro lado).Pronto! Já voltei para o pé de ti! Sabes Maria, é um rouxinol e tem uns olhos tão meigos - estranho! Quase parecem os teus. Se visses o modo como fixa o pobre pinheiro escanzelado - dir se ia que o conheceu desde sempre. Enfim, pareço um tontinho a divagar sobre um rouxinol! Santo Deus, estou a ficar senil! Desculpa me Maria mas tenho que ir para perto do cromatógrafo. Já são 8 horas ( a hora a que costumavas chegar) e a essa hora dói me mais falar contigo. Sinto mais a tua falta e, de qualquer modo, tenho o cromatógrafo à minha espera.
Ainda hoje não sei o que se passou naquela estranha noite laboratorial de Natal! Quando conclui as análises, o rouxinol ficou espavorido como um louco a esvoaçar freneticamente pela sala. Tentei chamá lo, abri lhe a janela mas não adiantava. Continuava a piar nervosamente e a voar deitando abaixo os tubos de ensaio. Depois de tanta agitação pousou um instante no parapeito e, nesse instante consegui agarrá lo, mas por pouco tempo. Deu me uma bicada violenta que me obrigou a largá lo e voou certeiro em direcção à árvore de Natal. Oh! Maldito pinheiro! O rouxinol ficou preso na luz eléctrica da estrelinha, no topo da árvore e , poucos minutos depois cheirava por todo o laboratório a penas de rouxinol queimadas. Tinha morrido electrocutado no pinheiro. AH! Maldito pinheiro!
Ainda hoje me pergunto se aquele estranho pássaro seria teu mensageiro, Maria ? Ou mesmo se aquele rouxinol, Maria eras tu? Não entendo.
O que é certo é que desde aquela estranha noite nunca mais montei o pinheiro de Natal e quanto ao rouxinol, mesmo ficando na amarga dúvida Maria, se serias tu, mergulhei o nessa mesma noite num frasco transparente de formol e numa prateleira de mogno lá está ele até hoje.
Não sei se o bicho era uma mensagem celeste, mas fosse o que fosse, acho que me agradeceria o descanso que lhe dei. Depois de uma noite agitada a calmaria do frasco e o frio do formol parece me a mim o rótulo da Eternidade.
E quanto a ti Maria, meu amor, se eras tu, perdoa me que não te vi, a não ser naqueles olhos tristonhos tão familiares ! Se eras tu assassinei te sem querer e , encarcerei te a ti, ao meu amor e ao pássaro num frasco que, apesar de não ser mais do que um frasco é a expressão exacta do meu bem querer. Tu mergulhada onde Eu te possa proteger dos perigos dos comboios e luzes de Natal.
Amo te muito
Bernardo


7 comentários:

Anónimo disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
C. disse...

Este sempre foi um dos meus contos de eleição e o meu preferido de todos os teus contos... Só alguém com um coração do tamanho do mundo pode compreender a profundidade do amor incondicional...

Adoro-te!

Maruca disse...

Este não conhecia amiga e é lindo, tristemente belo.
Um grande beijo para ti e obrigada pelo teu amor em amizade :)

RA disse...

Adorei quando mo deste para ler ... eu sei demorei a ler mais li e se queres saber ainda o guardo na minha pasta da escola...acompanha-me ... e adorei voltar a ler.A tua veia literária é fantástica!! Beijoquitas grandes!!!!!

Anónimo disse...

epá...isto já conhecço....

isto eu já li....


li numa fnac em Gaia.....

Afonso.

Anónimo disse...

Venoso e arterial assim sim. assim équé.

Af

J. Vilas Maia disse...

É caso para dizer que mais vale um pássaro na mão, que dois a voar...

não fazendo com isso promoção ao formol.

No fundo, eu gostaria de ver os dois pássaros a voar... sempre há mais opções; por outro, bastaria a quem quer deixar legado aos outros, pense que ele tb vive, e que uma existência não tem de ser obrigatoriamente substituída por aquela que em falta se sente.